Transitivos – Literatura::Fotografia::Desenho.


Corte e Costura
março 4, 2008, 8:43 pm
Filed under: Lilian Dorea
Bordo com linhas de cores fortes a sua silhueta em um pano branco e sem vida. A camiseta é laranja e os cabelos são vermelhos, como fogo. Escolho com afinco passional aquelas que irão dar forma e paixão aos seus olhos castanhos meio alegres e meio tristes – meu detalhe favorito em você, que capricho com certo desleixo proposital. Amplifico, inclusive, o globo do lado direito para não correr o risco de me envolver com um tecido ordinário de algodão.

Costura.
Costura.
Costura.

Dezena de quadrados meus, outra dezena de quadrados seus. Av. Paulista, Rua Augusta, Espaço Unibanco de Cinema, Praça Roosevelt, Sumaré, centro velho de São Paulo, Frida Café, boteco Escócia. Um quadrado para os meus desejos – não muitos, mas intensos – e outro para as suas viagens – muitas, porém tão… efêmeras. Cinco quadrados para os filmes europeus e infinitos para as notas musicais do róque, do blues e do jazz. Minhas palavras? Elas serão utilizadas para decorar a borda, afinal, não saímos nunca dela.

Corte.

A colcha de retalhos recém-fabricada por mim protege meus pés durante as madrugadas de SanPablo, porque carrego comigo um medo infantil dos fantasmas que rondam casas velhas em busca de pernas gordas, como as minhas. I don’t never wanna see what’s my mind see. Tenho medo do escuro e dos carros cantando pneus nas ruas e do uivo de alguns cachorros da vizinhança. E o medo costumava me fazer dormir com a luz do banheiro acesa para que eu pudesse enxergar o perigo, mas agora mergulho em infinitos recortes e adormeço contemplando a figura que remonta exatamente a noite em que te conheci.



contos de uma manhã de verão
janeiro 12, 2008, 3:13 am
Filed under: Daniela Lima, Lilian Dorea

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Foto: Daniela Lima.
Texto: Lilian Dorea*.

janeiro sem dinheiro, sem viagens e sem a necessidade esdrúxula de ter o corpo sarado para o verão. os dias estão assim: mortos. quentes e mortos. sem vontade até para ir ao bar da esquina, tomar a cerveja gelada de todos os dias. o dono do botequim é amigo e conselheiro, coloca as garrafas de skol na conta e ainda oferece uns amendoins como cortesia da casa. mas não, sem vontade. acho melhor aproveitar meu verão dando banho nos gatos e fazendo a sagrada faxina anual, porque as do resto do ano são apenas retoques necessários. e quando menos percebo o quarto é outro, de novo. gavetas com menos roupas, armários com menos bagunça, tudo de menos. só nã consigo dar fim aos jornais. acho que nunca vou conseguir me livrar desses cadernos especiais da folha de são paulo, cheios de dicas de museus, filmes, músicas, livros. mas óquei, a pilha está cada vez menor e eles já não ocupam tanto espaço assim, principalmente agora, com duas caixas a menos no guarda-roupa. três quilos de lembranças pro caminhão levar amanhã.

tiro do baú um saco só de papéis antigos. rasgo, amasso, separo e dou de cara com um envelope perdido no meio da bagunça. uma carta, uma foto, meu passado, uma ex-paixão. o primeiro velho de todos. ricardo. jornalista, escritor, metido à artista. ouvinte de blues, leitor de henry miller, me ensinou a gostar de anaïs nin e a querer ser como ela. ricardo gostava de fumar uns charutos cubanos e era bem mais velho do que eu. quase vinte anos de vida a mais. oito meses juntos. fodas incríveis, noites incríveis, e daí a gente terminou pelo mesmo motivo que todos os caras mais velhos e filhos da puta terminam com um garota de 21 anos: ele era casado.

sofri, definhei, andei na beira do precipício, circulei entre carros em movimento, chorei na plataforma do metrô abraçada a minha mochila. senti a dor mais violenta de todas as dores da paixão. durante um ano foi assim. fiquei sem dormir, bebi como se todos os bares do planeta fossem fechar, comi feito mulher grávida, é, afundei. e a saudades? saudades com o tempo passa, o caralho. saudade quando envolve amor, meu bem, cria raiz dentro do peito. e eu arrastava pela casa, ia e voltava do trabalho sem saber para onde exatamente tinha ido ou estava voltando. uma zumbi, morta viva, como esses dias. e a falta dele batendo cada vez mais forte. a falta gritando no portão da minha casa. o cheiro do charuto parecia ter nascido com ele. era o cheiro dele. e eu precisava me sentir próxima daquele sujeito. uma caixa, duas caixas; eu não fumava, eu só gostava do cheiro.

o cheiro do charuto trazia ele pra perto de mim, me dava energia, equílibrio, harmonia. aquela fumaça era tal como um incenso sendo queimado. e as finalidades do meu incenso cubano eram: combater as saudades, os fracassos amorosos e as boas lembranças. uau. até que um dia, os aromas finalmente fizeram efeito e o ricardo virou só alguém que nunca deveria ter passado pela minha existência, mesmo me apresentando o casal miller. enfim. hoje em dia percebo que o cigarro tem a mesma finalidade, o mesmo tranquilizador de corações dilacerados, com a diferença que a única que provoca qualquer estrago por aqui é essa que vos escreve. ninguém mais pisa no coitado a não ser os meus próprios pés. e, pensando bem, acho que vou lá tomar minha cerveja e comer uns amendoins, antes que o último maço de malboro acabe.

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