Transitivos – Literatura::Fotografia::Desenho.


Dilaceradas
agosto 29, 2007, 6:02 pm
Filed under: Aline Jobim, Transitivos Indiretos

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 Imagens: Aline Jobim*.
Textos: Rainha das Pérolas, Clarice Lispector.
Música: Let’s Call the Whole Thing Off – Billie Holiday.

“Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para frente”.

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 “Passei a minha vida tentando corrigir os erros que cometi na minha ânsia de acertar. Ao tentar corrigir um erro, eu cometia outro. Sou uma culpada inocente.”

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 “Suponho que me entender não é uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato… Ou toca, ou não toca.”

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Sonhos tortos
agosto 26, 2007, 4:14 pm
Filed under: Daniela Lima, Mika Lins, R. Senra, Transitivos Indiretos

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Desenho: Mika Lins.
Texto: Daniela Lima e (o quase Transitivo) R. Senra*.

Naquela noite, o Baixo Gávea era Paris – ou era a vodka que não queria ser russa; queria ser parisiense. Olhei pro copo e pensei: “Falta muita delicadeza para”. Mas não era o Baixo Gávea; era Montmartre – e o segundo ponto e vírgula da coisa. E então, Cézanne, Monet, Van Gogh, Renoir, Toulouse-Lautrec e eu, em uma mesinha à beira da rua. Ele chegou, com as suas mãos de escritor, e me ofereceu um livro de poesias. Recusei: “Não falo francês”. Mas o livro acabou ficando sobre a mesa e, de repente, começou a flertar com o português:


O Bordel do Poeta

Tava com aquela cara de porta quando abriu o espelho e entrou na sala.
Parágrafo 2046, letra 402, fundos.

De cara, eram seis exclamações magrelas,
pulando putas e pretas num canto,
final do corredor.

Já sobre o palco, parco, porco e alto,
sinuosa e só de calcinha,
rebolava uma interrogação
e bem torta,
da esquerda à direita
e ao meio,
quase. Quase tocando o chão. Onde,
só,
dormia uma moedinha esquecida
por uma reticência incompleta.

Suas duas irmãs surrupolhavam redondas
Três Marias boladas pelo basculante,
Sujeitas oblíquas,
em pontos de inveja
barrigas brilhando.

Abriu seu reflexo e entrou no banheiro.
Olhou para a porta e as viu,
em cima dos olhos:
Duas vírgulas dispensáveis,
em forma de parêntese.

Fechou o contexto e as raspou,
tornou-as colchetes.

Torneira ligada,
água quase molhada,
barulho de verbo,
um redemoínho formou.

Os travessõezinhos de pêlos
à pia escorreram,
e correram,
chegaram,
arfaram,
morreram,
entraram no ponto
e ponto!

Saíram pelo cano.

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Para S
agosto 24, 2007, 8:08 pm
Filed under: Leonardo Ramadinha, Lucianno Maza

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Foto: Leonardo Ramadinha.
Texto: Lucianno Maza.

Então, adeus.

O palco sem você é vazio. Não importa quantos corpos se movam entre a neblina artificial.

Dividimos tão poucas noites. Tão pouco vinho foi entregue às nossas veias… Veneno de deuses para os homens. Você meu ascense espiritual, ritual de libertação tóxica.

 

Eu te procuro em outras mulheres, e em alguns homens também. Mas nunca te encontro. Você não é uma divindade que habita em seus corpos, você é meu altar de adoração à vida.

 

Sua bipolaridade me surpreende e me prova vivo, sua melancolia me traz conforto, como se retornasse à casa ou visse uma foto de mim mesmo. Suas fragilidades: querer te abraçar, cuidar de você, subverter as regras que criamos, falar sem palavras, respirar no seu ritmo.

 

É tudo tão doído, tão absurdo e cinza. Hemorragia de palavras vazias, embalagens de biscoito recheado, drogas médicas ao lado da cama. Nada me parece familiar nessa vida.

 

Mas você traz um sentido pra isso tudo. Tentar te entender, desistir, tentar novamente. Te pedir em silêncio pra me permitir conhecer o que há por detrás do teu olhar. Mas você nega. Privilégio esse dado aos homens menos trôpegos, não aos viajantes que aportam hoje em ti e logo se vão ao mar silencioso do esquecimento.  

 

Penso em qual planeta você está agora, e que tipo de ser que não eu te faz companhia, se você está caminhando com pés descalços em flores secas de cor lilás ou em cacos de vidros: pétalas cortantes da rosa da civilização. O silêncio sai dos seus lábios mortos no sono da noite. Ou é o álcool que brinda o céu da sua boca? Quisera eu estar aí e te enxugar as lágrimas invisíveis.

 

Aqui, sozinho penso em como é patético estar vivo. Sinto uma saudade do sempre e do nunca, dos tempos mais remotos da humanidade onde você era pó, e eu pó e tudo cinzas ao vento norte de um dia sem fim. Da janela do décimo oitavo andar vejo as ruas iluminadas pelo âmbar dos postes e o azul lavanda de uma lua tímida como você. Uma voz doce vem da caixa de som, na música uma mulher implora à outra, Jolene, que não fique com seu homem e diz algo como “você pode facilmente tomar o meu homem, mas você não sabe o que ele significa pra mim, você poderia escolher qualquer homem, mas eu nunca poderia amar novamente”.

 

Você conhece essa música? Tanta coisa eu queria te mostrar… Te mostrar meus livros, meus cds, minhas idéias meio tortas sobre o mundo. Eu queria te mostrar a mim mesmo. Dividir-me contigo. E queria conhecer você. Não no raso da piscina diária, mas no profundo do mar escuro. Eu preciso da escuridão, das profundezas, do que é inatingível… Minhas asas são adereço e fantasia, sou Ícaro querendo cair, sempre, cada vez mais: ser um anjo caído te acariciando na sombra eterna. 

 

Imagens poéticas transpassam minha mente quando lembro dos teus olhos perdidos na imensidão da vida, cegueira branca de quem enxerga ao longe, através, que vê o que há de sagrado e escondido. Que medo tenho do seu olhar de medusa que transforma tudo á volta em pedra sem sentido.

 

Eu não quero te reencontrar, não apenas. Esbarrar em você e te olhar fingindo não sentir todas as dores do mundo em mim. Eu quero me calar na sua frente, chorar como menino imbecil, deitar nos seus seios minhas tristezas essenciais, entrar dentro de você e existir aí. Loucura insana querer viver dentro de ti. Pulsar minha vida na tua. Meu corpo no teu.

 

Lembro que da última vez que nos vimos esqueci com você um pedaço do meu coração, talvez ele já tenha apodrecido em suas mãos, ou você o preservou na memória. Será que algum dia estarei no diário dos seus dias frios?

E penso que os românticos estão mortos.

Querida S.

 



Alma Gêmea
agosto 19, 2007, 11:32 pm
Filed under: Marco A

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Segunda
agosto 16, 2007, 8:00 pm
Filed under: Clara Mazini, Daniela Lima

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 Foto: Daniela Lima.
Texto: Clara Mazini.

 

 

Ele dormia levemente inclinado para a esquerda, de um modo como ela jamais experimentara. Arriscou, então, a mesma posição por quem sabe três segundos, mas logo voltou o rosto e abdômen para junto do lençol, que de tão branco parecia respirar com ela.

 

Já ele respirava longe, em algum lugar onde a posição de seu corpo deveria fazer algum sentido. Respirava tão distante que o ar parecia mesmo escapar-lhe, como acabam fugindo as coisas desnecessárias para quem mete-se debaixo de tantos sonhos.

 

Aproximou-se devagar e olhou-o demoradamente, parecendo derramar gota a gota. Por um instante (ele mal se movia), uma faísca de dúvida. Mas sim, ele estava vivo. O ar ia e vinha quase despercebido de si mesmo, mas ainda sim.

 

Pensou então na grandiosidade da morte, na importância natural que recebem as coisas que só acontecem uma vez. Sem repetições ou ensaios, lá vem… mas não agora. Apenas distante, com o ar distraído nos pulmões. Sonolento, dormente.

 

Era engraçado ver a pele branca dialogando perfeitamente com a cor do lençol. Naquele conjunto tudo sugeria uma harmonia – poderia mesmo dizer que ele parecia ser feito para aquela cama, para aquele instante do dia. Um garoto feito de manhã e tonalidades homogêneas.

 

Uma pena! Aquela cena, desenhada pela pele, ar e algodão, também só aconteceria uma vez. Um movimento inconsciente, uma agitação de dedos… e já viraria outra.

 

Tentou fazer de seus olhos dois rasgões imóveis e muito atentos, antes que aquela imagem mudasse. Era bonito daquele jeito – bonito de um modo que não mais seria em poucos instantes (não por deixar de ser bonito, mas por deixar de ser daquele modo como ela capturava, e ela gostava assim). Encarou até os olhos arderem por insistirem em não fechar. Piscou, afinal, duas vezes e sentiu que após esse ato algo havia ficado para trás, embora quase tudo permanecesse como até então.

 

Sentiu-se saudosa, mas ao mesmo tempo livre, e ensaiou um movimento qualquer com o braço. Ele moveu a cabeça, mas continuou na sonolência típica dos que costumam tomar porres durante a madrugada.

 

Engraçado, tantos litros de cerveja – mas ele agora tinha o sono como álibi para tornar-se leve, quase inocente de qualquer situação. E naquele momento era essa a melhor palavra. Leve… mais leve que uma pluma, mais leve do que uma idéia de pluma.

 

E era assim que ela também se sentia. Testemunhar tudo aquilo impregnava-a com a sensação inegável daquele quarto. Leve e ao mesmo tempo passageiro (por mais que insistisse em não piscar os olhos).

 

Deixou-se então observando aquele peito que agora ia e vinha com mais força, ritmado como os ponteiros de um relógio. Ah sim, o tempo – faltava pouco, mas ainda… Resolveu então se despir de qualquer tipo de pensamento e pousar toda a sua atenção no peito indo e vindo… Indo e vindo como algo que não consegue ir completamente embora.