Transitivos – Literatura::Fotografia::Desenho.


contos de uma manhã de verão
janeiro 12, 2008, 3:13 am
Filed under: Daniela Lima, Lilian Dorea

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Foto: Daniela Lima.
Texto: Lilian Dorea*.

janeiro sem dinheiro, sem viagens e sem a necessidade esdrúxula de ter o corpo sarado para o verão. os dias estão assim: mortos. quentes e mortos. sem vontade até para ir ao bar da esquina, tomar a cerveja gelada de todos os dias. o dono do botequim é amigo e conselheiro, coloca as garrafas de skol na conta e ainda oferece uns amendoins como cortesia da casa. mas não, sem vontade. acho melhor aproveitar meu verão dando banho nos gatos e fazendo a sagrada faxina anual, porque as do resto do ano são apenas retoques necessários. e quando menos percebo o quarto é outro, de novo. gavetas com menos roupas, armários com menos bagunça, tudo de menos. só nã consigo dar fim aos jornais. acho que nunca vou conseguir me livrar desses cadernos especiais da folha de são paulo, cheios de dicas de museus, filmes, músicas, livros. mas óquei, a pilha está cada vez menor e eles já não ocupam tanto espaço assim, principalmente agora, com duas caixas a menos no guarda-roupa. três quilos de lembranças pro caminhão levar amanhã.

tiro do baú um saco só de papéis antigos. rasgo, amasso, separo e dou de cara com um envelope perdido no meio da bagunça. uma carta, uma foto, meu passado, uma ex-paixão. o primeiro velho de todos. ricardo. jornalista, escritor, metido à artista. ouvinte de blues, leitor de henry miller, me ensinou a gostar de anaïs nin e a querer ser como ela. ricardo gostava de fumar uns charutos cubanos e era bem mais velho do que eu. quase vinte anos de vida a mais. oito meses juntos. fodas incríveis, noites incríveis, e daí a gente terminou pelo mesmo motivo que todos os caras mais velhos e filhos da puta terminam com um garota de 21 anos: ele era casado.

sofri, definhei, andei na beira do precipício, circulei entre carros em movimento, chorei na plataforma do metrô abraçada a minha mochila. senti a dor mais violenta de todas as dores da paixão. durante um ano foi assim. fiquei sem dormir, bebi como se todos os bares do planeta fossem fechar, comi feito mulher grávida, é, afundei. e a saudades? saudades com o tempo passa, o caralho. saudade quando envolve amor, meu bem, cria raiz dentro do peito. e eu arrastava pela casa, ia e voltava do trabalho sem saber para onde exatamente tinha ido ou estava voltando. uma zumbi, morta viva, como esses dias. e a falta dele batendo cada vez mais forte. a falta gritando no portão da minha casa. o cheiro do charuto parecia ter nascido com ele. era o cheiro dele. e eu precisava me sentir próxima daquele sujeito. uma caixa, duas caixas; eu não fumava, eu só gostava do cheiro.

o cheiro do charuto trazia ele pra perto de mim, me dava energia, equílibrio, harmonia. aquela fumaça era tal como um incenso sendo queimado. e as finalidades do meu incenso cubano eram: combater as saudades, os fracassos amorosos e as boas lembranças. uau. até que um dia, os aromas finalmente fizeram efeito e o ricardo virou só alguém que nunca deveria ter passado pela minha existência, mesmo me apresentando o casal miller. enfim. hoje em dia percebo que o cigarro tem a mesma finalidade, o mesmo tranquilizador de corações dilacerados, com a diferença que a única que provoca qualquer estrago por aqui é essa que vos escreve. ninguém mais pisa no coitado a não ser os meus próprios pés. e, pensando bem, acho que vou lá tomar minha cerveja e comer uns amendoins, antes que o último maço de malboro acabe.

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Minha vida sem mim
janeiro 2, 2008, 6:01 pm
Filed under: Clara Mazini, Daniela Lima

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Foto: Clara Mazini.
Texto: Daniela Lima.

Você precisa entrar no ringue sabendo que não vai escapar de todos os socos. Amigo, você vai apanhar. E muito. Então, pense se vale a pena. Mas saiba que aqui fora, na torcida, a gente também se dá mal. As pessoas estão sempre dispostas a roubar a sua cadeira, a trapacear nas apostas e até a tirar a sua vida.

Já não fecho os olhos, na hora de receber a minha dose diária de decepção. Não é qualquer golpe que me derruba – embora,

todos

me

machuquem.

 

Tento ter consciência da totalidade das coisas e: um soco é só um soco. Então, procuro não me prender àquele instante de dor – a vida vai além dos elásticos, dos juízes e da torcida. Na verdade, a vida vai além de você e

de

mim.


Sonhos tortos
agosto 26, 2007, 4:14 pm
Filed under: Daniela Lima, Mika Lins, R. Senra, Transitivos Indiretos

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Desenho: Mika Lins.
Texto: Daniela Lima e (o quase Transitivo) R. Senra*.

Naquela noite, o Baixo Gávea era Paris – ou era a vodka que não queria ser russa; queria ser parisiense. Olhei pro copo e pensei: “Falta muita delicadeza para”. Mas não era o Baixo Gávea; era Montmartre – e o segundo ponto e vírgula da coisa. E então, Cézanne, Monet, Van Gogh, Renoir, Toulouse-Lautrec e eu, em uma mesinha à beira da rua. Ele chegou, com as suas mãos de escritor, e me ofereceu um livro de poesias. Recusei: “Não falo francês”. Mas o livro acabou ficando sobre a mesa e, de repente, começou a flertar com o português:


O Bordel do Poeta

Tava com aquela cara de porta quando abriu o espelho e entrou na sala.
Parágrafo 2046, letra 402, fundos.

De cara, eram seis exclamações magrelas,
pulando putas e pretas num canto,
final do corredor.

Já sobre o palco, parco, porco e alto,
sinuosa e só de calcinha,
rebolava uma interrogação
e bem torta,
da esquerda à direita
e ao meio,
quase. Quase tocando o chão. Onde,
só,
dormia uma moedinha esquecida
por uma reticência incompleta.

Suas duas irmãs surrupolhavam redondas
Três Marias boladas pelo basculante,
Sujeitas oblíquas,
em pontos de inveja
barrigas brilhando.

Abriu seu reflexo e entrou no banheiro.
Olhou para a porta e as viu,
em cima dos olhos:
Duas vírgulas dispensáveis,
em forma de parêntese.

Fechou o contexto e as raspou,
tornou-as colchetes.

Torneira ligada,
água quase molhada,
barulho de verbo,
um redemoínho formou.

Os travessõezinhos de pêlos
à pia escorreram,
e correram,
chegaram,
arfaram,
morreram,
entraram no ponto
e ponto!

Saíram pelo cano.

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Segunda
agosto 16, 2007, 8:00 pm
Filed under: Clara Mazini, Daniela Lima

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 Foto: Daniela Lima.
Texto: Clara Mazini.

 

 

Ele dormia levemente inclinado para a esquerda, de um modo como ela jamais experimentara. Arriscou, então, a mesma posição por quem sabe três segundos, mas logo voltou o rosto e abdômen para junto do lençol, que de tão branco parecia respirar com ela.

 

Já ele respirava longe, em algum lugar onde a posição de seu corpo deveria fazer algum sentido. Respirava tão distante que o ar parecia mesmo escapar-lhe, como acabam fugindo as coisas desnecessárias para quem mete-se debaixo de tantos sonhos.

 

Aproximou-se devagar e olhou-o demoradamente, parecendo derramar gota a gota. Por um instante (ele mal se movia), uma faísca de dúvida. Mas sim, ele estava vivo. O ar ia e vinha quase despercebido de si mesmo, mas ainda sim.

 

Pensou então na grandiosidade da morte, na importância natural que recebem as coisas que só acontecem uma vez. Sem repetições ou ensaios, lá vem… mas não agora. Apenas distante, com o ar distraído nos pulmões. Sonolento, dormente.

 

Era engraçado ver a pele branca dialogando perfeitamente com a cor do lençol. Naquele conjunto tudo sugeria uma harmonia – poderia mesmo dizer que ele parecia ser feito para aquela cama, para aquele instante do dia. Um garoto feito de manhã e tonalidades homogêneas.

 

Uma pena! Aquela cena, desenhada pela pele, ar e algodão, também só aconteceria uma vez. Um movimento inconsciente, uma agitação de dedos… e já viraria outra.

 

Tentou fazer de seus olhos dois rasgões imóveis e muito atentos, antes que aquela imagem mudasse. Era bonito daquele jeito – bonito de um modo que não mais seria em poucos instantes (não por deixar de ser bonito, mas por deixar de ser daquele modo como ela capturava, e ela gostava assim). Encarou até os olhos arderem por insistirem em não fechar. Piscou, afinal, duas vezes e sentiu que após esse ato algo havia ficado para trás, embora quase tudo permanecesse como até então.

 

Sentiu-se saudosa, mas ao mesmo tempo livre, e ensaiou um movimento qualquer com o braço. Ele moveu a cabeça, mas continuou na sonolência típica dos que costumam tomar porres durante a madrugada.

 

Engraçado, tantos litros de cerveja – mas ele agora tinha o sono como álibi para tornar-se leve, quase inocente de qualquer situação. E naquele momento era essa a melhor palavra. Leve… mais leve que uma pluma, mais leve do que uma idéia de pluma.

 

E era assim que ela também se sentia. Testemunhar tudo aquilo impregnava-a com a sensação inegável daquele quarto. Leve e ao mesmo tempo passageiro (por mais que insistisse em não piscar os olhos).

 

Deixou-se então observando aquele peito que agora ia e vinha com mais força, ritmado como os ponteiros de um relógio. Ah sim, o tempo – faltava pouco, mas ainda… Resolveu então se despir de qualquer tipo de pensamento e pousar toda a sua atenção no peito indo e vindo… Indo e vindo como algo que não consegue ir completamente embora.