Transitivos – Literatura::Fotografia::Desenho.


Visto
janeiro 6, 2008, 6:00 am
Filed under: Marjorie Rodrigues, Roberto Buaiz

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Foto: Roberto Buaiz.
Texto: Marjorie Rodrigues.

Visto, passaporte, porta giratória, fila, revista, malas, raio X, táxi, check in. O desconhecido. Abriu a janela que não era sua, que dava para uma praça de uma cidade que não era sua num país que não era o seu. “Forasteira no mundo todo: eu”, ela pensou em voz alta e desenhou o desabafo no ar. Não era uma questão de tempo nem de costume. Também a praça a encarava como se não a desposasse jamais. Os olhos dos outros, os olhos do povo, a voz de deus. A verdade simples e simplista dos ditos populares que ela não conhecia. Linguagem sem língua, língua sem traquejo. Nada era dela, nada era ela. Mas desespero nem esperança nenhuma. Vai ser assim aqui hoje, vai ser assim ali amanhã e é assim, assim que é: cidadãos do mundo, cidadãos de ninguém, matilha de forasteiros do eu. E engana-se quem pensa que é triste ver todo mundo, inclusive a gente mesmo, como outro: a voz dos outros, a voz de deus. Ou simplesmente: a voz. Mais nada. Ela se deitou na cama que era mais dura que a sua, enrolou-se nos lençóis por onde passaram outros corpos que não o seu, sentiu o cheiro de alvejante, desinfetante, detergente, creolina: estava tudo esterilizado para ter puro cheiro de ninguém, pois ali não podia ser lar. Dormiu, enfim, só por insistência. E aí começou outra vez: visto, passaporte, porta giratória, fila, revista, malas, raio X, táxi, check in. Se pudesse achar a chave do cadeadinho da mala, encontraria nos bolsos internos o globo inteiro, todos os sonhos do mundo cuidadosamente abarrotados para caber num diminuto espaço: ela. Mas veja só que azar, o cadeado ficou em casa. Lugar onde ela nunca esteve.